Eu imaginei que eles estivessem saindo da escola. Mas não, não estavam vestidos como quem sai da escola. Alguns sequer vestidos estavam. Eram trapos que os cobriam. Andavam. Como uma cena conhecida de um tempo recente que tentamos nos esquecer.
Era verdade que eles não me ignoraram ali. E como ninguém os olhavam, minha presença, minha observação causou inquietude naqueles passos. Eles não queriam que eu olhasse? Eles tinha vergonha? De que? Das manchas de poeira em suas caras? Dos rasgos em suas roupas?
Eu quis perguntar. E antes de balbuciar qualquer palavra que fosse, um menino parou.
Olhou-me nos olhos. Era um olhar sereno, de quem não esconde segredo. Encarei-o de volta e ele sorriu. Continuou andando e eu o segui.
Menino! Menino! - gritei. E ele continuou.
As ruas do Rio de Janeiro estavam tomadas de crianças que andavam rápido mas não corriam. E ninguém parava pra olhar.
O mais curioso, é que de fato, aquilo não tinha nada de anormal, mas pra mim, foi um momento único. Não sei explicar ao certo o porquê. Mas ali, naquela rua cheia de carros e gente, meninos e meninas andavam como não se deve andar. Depressa e sem correr.
Me perguntei se eram meninos de rua. Deviam ser. Talvez estivessem indo a algum lugar pedir dinheiro e comida, ou guardar carros. Ou será que eram apenas crianças sujas de tanto brincar?
Quem seriam seus pais? Quem os deixou sair?
Foi então, que bem em frente ao Parque Lage eles atravessaram a rua e entraram.
A minha surpresa não podia ser maior. Ali, enconstada numa árvore, estava uma senhorinha de 70 e tantos anos. Cabelos brancos, vestido de algodão, diadema, sandálias de couro. E várias bolsas de feira.
As crianças corriam e gritavam: Tia Lúcia! Tia Lúcia!
Um menino chegou primeiro e arrancou um dos sorrisos mais lindo que eu já vi. Ganhou um abraço bem apertado. E de longe eu consegui ouvir a voz meio rouca da senhora: Que saudades, meu filho. Então, todas as crianças foram chegando e a abraçando. Umas ganhavam beijos na testa, outras eram chamadas atenção por não terem tomado banho.
A senhora me viu. E sorriu. Fez um sinal pra eu chegar mais perto.
Como quem sabia exatamente o que eu andava me perguntando, ela disse: Essas crianças são muito especiais. E você já vai saber porque.
De dentro das sacolas de feira, surgiram diversos instrumentos. Pandeiros, caracas, flautas doces, gaitas, tambores e chocalhos.
Como se Deus tivesse mandado 15 arcanjos para tocar A Paixão Segundo São Mateus, de Bach, aquela música chegou aos meus ouvidos.
Foi então que eu entendi. Que aquilo estava no planos das ideias. Que nada daquilo de fato havia acontecido. Que era transcendental. E só os muito sortudos poderiam escutar. Uma lágrima caiu - Eu disse - falou a senhora com um orgulho que só as mães tem.
Aquilo que só se pode ver quando os olhos enxergam além do óbvio é o que dá sentido a nossa existência. O novo já existia, mas meus olhos estavam acostumados a olhar para as mesmas coisas. E foi por isso que eu entendi. Aquilo não estava acontecendo em outro lugar, senão dentro de mim. Eram os arcanjos que Deus tinha enviado para cantar aquilo que eu precisava saber.
Eu poderia ter enxergado apenas meninos de rua.
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