quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Insônia

Não consigo dormir, já não consigo dormir há dias.
Não é barulho, é agonia.
O gato preto que me faz companhia apaga ao pé da cama.
Eu levanto, enrolo o tabaco e encosto na sacada pra fumar.
Penso ser este o único momento verdadeiramente vivido no meu dia.
Aquele – entre duas e três da manhã – ali, na sacadinha que dá pra rua que não passa ninguém.
Um homem passa apressado com medo da madrugada.
Por que o escuro causa tanto medo?
Saboreio no tabaco todas as paixões que não vivi no meu dia.
Todas as comidas que engoli, todos os olhares que evitei.
Não vivi – digo a mim mesma.
E a fumaça do cigarro se espalha no infinito.

Estalou alguma coisa no quarto, fui ver.
Não era o gato. Não era ninguém.
Era o barulho da minha alma se alongando.

Tenho atrofiado a alma.

E cigarro faz tão mal.

Deito na cama e penso: 
insônia é alma desperta. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Alvalade


“Acho que uma vida não cabe entre as ruas de Alvalade e as portas de Benfica”

Era uma manhã fria de janeiro, e ela me acordou apressada.
Seu coração batia forte, e seu estômago estava estranho.
Comi um oreo olhando pra janela que dava ao rio Sado, troquei a roupa e a fui seguindo até a estação, no trilho que atravessava o Tejo, nós sabíamos que não haveria volta.

E até que a Avenida de Roma nos sorriu. Apresentava-se Alvalade.
O gosto do ar, o cheiro da rua, a cor do céu. Tudo mudara. Tudo virou português.

Fernando Caldeira era o nome da rua, na rua que dava pra outra rua chamada Fernando Pessoa, que dava pra rua Florbela Espanca, que abrigaram meus passos e meu coração.

Naquele dia, a senhorinha de cabelos grisalhos e o senhorzinho de boina nos deram mais que uma casa, nos deram um lar, um abrigo, um lugar pra chamar de nosso.

Da sacada, eu vi mais que uma rua, eu via homens e mulheres que andavam como em um poema. E depois daquele dia, tudo na minha vida virou literatura.

Ela sabia que seria ali, que ela seria completa. Eu, eu me descobri ali incompleta.



domingo, 14 de setembro de 2014

Enquanto a água ferve...

Fervo a água pro chá, mas não tem erva.
Enquanto a água começa a fazer bolinhas, eu penso em Platão e na erva que acabou e em alguma maneira de aproveitar aquela água quente pra alguma coisa.

Talvez a solidão seja isso.

As bolinhas sobem e eu já não sei se apago ou não fogo. Não tem erva. E Platão não sai da minha cabeça. Não to pensando em filosofia. Só no nome mesmo.
Platonismo. Amor platônico.

Que porra é essa que não sai da minha cabeça?

A água começa a borbulhar tanto que cai da chaleira. Devo secar.
 É certo que solidão é uma questão antiga, mas eu derramei a água toda, e não posso deixar tudo sujo.
 O peito aperta mais uma vez. Não tem chá, só sujeira.

Acho que a solidão é isso, é o que pensamos entre água ferver e o chá ficar pronto.
 Mas as vezes a erva acaba.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Ele nunca saberá que vulgaridade nasce do frio

Nos dias frios, ela sempre ficava um pouco vulgar. Algo acontecia com sua libido, e com sua vontade de ser nada, banal, inexistente, igual a tudo e a todos.
O telefone tocou e a coberta que a aquecia escorregou um pouco. Atendeu e sentiu frio. 
Era ele. 
Ele começou a divagar sobre dezenas de assuntos que só diziam respeito ao que ele gostava de ouvir.
Ela, com frio, permaneceu em silêncio.
E ele não parava de falar de si.
Nas terças-feiras, o frio nunca lhe incomodava, mas naquela a coberta se fez pequena e inútil.
O pouco que ela dizia era sobre ele.
E o muito que ele dizia era sobre ele.
Então, ela se questionou – por que diabos ele me ligou?
Sem eira, nem beira ele mandou um beijo e se despediu.
Sequer perguntou se ela estava bem.

E ela... ela só queria dizer que estava com frio.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Poema do dia frio

Meu amor, deixa eu dormir na tua casa
Me empresta uma meia
Me faz um café
Esquenta meu pé

Meu amor, me empresta uma coberta
Fecha a janela,
Deita aqui comigo

Tá frio.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Fogueira Dionisíaca

Acho que são suas mãos,
os seus olhos pequenos e verdes.
Esses que ficam escondidos
atrás desses óculos
de gosto bem duvidoso.
Talvez seja seu braço
envolvendo minha cintura
e me puxando pra perto.
Ou o choque quando você toca em mim.

Quem sabe
a sua sobrancelha insinuando
as sinuosas curvas do meu corpo.
Seus braços, suas costas, suas pernas,
sua panturrilha de herói grego,
esculpida em mármore.


Não sei ao certo.
Mas tem algo que acende
quando você tá perto,


Você faz uma fogueira dionisíaca em mim.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

O encanto do desencanto

Entre cantos, contos, recantos, procuro não me encantar.
Fico assim, dispersa. Nesse mundo que é maior que ele.
Maior que eu. Maior que nós.

Fico em desencanto, no canto. Olhando tudo com suave amargura.
Poderia ser. Poderia. Mas não é.
E não é porque não pode ser. Só poderia.

Passaria pássaros por ali, ou passos...
Não, prefiro não passar.
Preciso ficar. Ficar inerte. Imóvel.

Em qualquer canto, com qualquer encanto que não me mova.


Não, eu não gosto de me encantar.