segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Chagas e cruzes que vi pelo caminho


Acompanhava em procissão os homens que iam se crucificando ao longo do caminho. Olhavam uns nos olhos dos outros e se viam. Chagas e sonhos.
Carregavam pesadas cruzes, eram os sonhos que ameaçavam a ordem e o progresso do mundo. Não se cruzavam na estrada, passava apenas um após o outro. E quem observava de fora, como por fetiche ou ignorância, aplaudia.
Eles sangravam e aquele sangue que marcava o asfalto quente sujava meu pé.
Eu vi um deles caí, mas como acompanhante não podia fazer nada além de olhar.
Quis ajuda-lo, mas o homem de capacete e escudo me puxou para dentro da faixa de contenção. O homem caiu morto no meu pé, e os cães pularam naquele corpo.
Meu estômago começou a doer, meus olhos encheram de lágrimas, mas não conseguia chorar. Peguei uma rua paralela, e enquanto saía dali, percebi o porquê das pessoas preferirem a ignorância. Não é maldade, é instinto de sobrevivência.

Mas me perguntei, e durante todo tempo me pergunto: por que será que eles ignoram as chagas, o sangue e os gritos, mas idolatram a cruz? Será que eles reconhecem os sonhos perigosos para a ordem pública? 

sábado, 28 de setembro de 2013

Sentimento analfabeto

O lápis risca o papel.
Não conheço o signo.
Leio como se fosse palavra
Não é.

Esforço-me para mais um vez
Riscar o papel.
Desconheço o signo.
Não tenho ilusão de ler.

Jogo o lápis contra a parede.
Rasgo o papel.
E leio a carta que me escreveste.

Não respondo.
Já não sei escrever.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Choro de seguir caminhando



"Quando saí aos mares fui infinito"
(Pablo Neruda) 


Hoje o mundo chora, como chorou ontem. E antes disso. Como vem chorado e chorado, desde que nasceu.
Hoje eu choro com o mundo. Choro pelo Chile. Por Pablo.
Pablo que nasceu e morreu sendo chileno. Que nasceu Pablo e morreu Neruda.
Pablo que nunca me conheceu. Neruda que eu conheço todo dia.
Chorar a morte de Pablo, chorar a morte de Victor.
Chorar até soluçar, soluçar por Salvador.
Chorar até começar a caminhar....
Caminhar até tua boca, e respirar os ares benditos dos Andes.
Porque aqui na minha terra lutamos para respirar.
Lutamos pelos mortos com flores e danças.
Nos ensinou a terra que mãe só amamentou nossos sonhos de liberdade.
Choramos porque carregamos o peso da nossa maldita história.
O mundo hoje chora. América Latina chora mais.

Setembro de 1973, não esquecemos de você.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Quando eu te mostrar, você não vai querer sair


Você que escorre
entre meus dedos
e me diz coisas
que nunca vou
compreender.

Você que fica
tão perto que
chega a ser
quase possível
tocar.

Você que sorri
para mim e  
me deixa vermelha
só de me olhar.

Você que me perde
porque nunca me
pediu para
ficar.

Você vai dormir
aqui esta noite.
Vai fazer amor
comigo e vai
pedir pra ficar.

Não, não pedindo
só to dizendo.
Deixa só eu te 
mostrar uma coisa. 

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Crêem os que crêem.

Escutava os teus passos no caminho.
Enquanto andávamos e você cantarolava uma música conhecida, 
o barulho que ouvia era os seus pés ao lado dos meus.
Aquelas altas montanhas foram recheada de pedras 
e pedras são passos de andarilhos que se perderam em uma outra dimensão do universo.
Como eu me perdia de você. Seus passos se perderam na altitude.
Eu gritei e ninguém me ouviu. Senti saudade, mais saudade que medo.
As nuvens me sufocavam, e eu me sentia longe de Deus, longe de tudo.
Fiquei surda sem o barulho dos teus passos.
Fiquei cega sem o seu sorriso.
Subi, fugindo das nuvens.

Você continuou cantarolando aquela velha música “y que sea lo que sea”.
Fui até o alto. E escutei o que procurei escutar.

Teus passos mudos. Teu sorriso imóvel.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

"Eu nunca guardei rebanhos mas é como se os guardasse"


Existe um poema chamado O Guardador de Rebanhos, do Alberto Caeiro.

Era de manhã quando saímos a caminho de Coimbra, pegamos o trem às 7:23 na estação de Santa Apolónia. E já fazia calor. Eu abri o livro que tinha ganhado, a Poesia Completa de Alberto Caeiro. Achei que seria legal ler mais sobre aquele poeta que morava logo alí e que todo mundo amava. Não poderia saber, afinal, quem poderia imaginar que seria ele que dividiria todo esse peso comigo.
Foi então que na página 52, estava ele. O poema que me tiraria da solidão de viver sem você. Hoje, como todos os dias, eu lembrei dele, porque o mundo me parece muito difícil de entender, e o Menino Jesus me explica, como se soubesse tudo, como se de fato existisse. Foi então que eu percebi a nota de rodapé, do Ricardo Reis – “anseio de contar aos deuses coisas da origem do mundo”.
Então, como em uma aventura espiritual, ele assoprou ao meu ouvido. “Não haverá de voltar, mas você pode inventar que tudo isso seja verdade”. Então, eu lembrei daquele trem, e de como me senti ali, no céu azul da península ibérica. E pensei nas pessoas, nas guerras, no universo inteiro. E cheguei a mesma conclusão que o Menino Jesus, “Em tudo isso falta aquela verdade que uma flor tem ao florescer”.
Eu tento me desculpar com os deuses, mas eles não escutam. O que resta a mim é participar de reuniões periódicas com Caeiro nos meus sonhos. ”E ele brinca com meus sonhos e gozamos o segredo comum que é o de saber por toda parte que não há mistério no mundo e que tudo vale a pena”.  
E eu vou caminhando ao lado do meu pastor amoroso, pelo caminho que houver.
Foi assim que doeu menos não te ver. 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Sobre erotismo e poesia

Foto: Elliott Erwitt

Há algum tempo venho pensando nos porquês, nessas razões psíquicas para sermos como somos. Em um recorte amplo e sem o menor comprometimento científico, tenho tentado desvendar essas coisas loucas que passam na minha mente e não tem de forma alguma como se fixar. São as diversas formas de olhar o mundo que me fascinam, mas há algo de muito errado, algo quase catastrófico, que nos pune desde que nascemos.
A negação de nosso instinto animal, explicado por Freud e depois por tantos outros que o seguiram, mas faz sentido? Acredito que sim, nosso erotismo é guardado por senhas, horários, e faixa etária. E somos condenados a praticar qualquer ação de prazer sexual de forma monogâmica, discreta e decente.
Se as religiões conspiraram para que o sexo fosse – ainda hoje – um tabu ou um vergonha, não é somente culpa delas a gigante aflição que o ser humano tem com a questão sexual. Não há liberdade nesse campo, e quando há, são palavras como libertinagem e promiscuidade que identificam a ação.
Porem, nada disso é novidade, e investigar a sexualidade humana só tem uma função: a de desmistifica-la. Hoje mais do que nunca. As bandeiras LGBT e identificações de gêneros hoje em dia não só estão mais na pauta científica como também na pauta política. Mas é preciso entender que para debater o assunto da pluralidade da sexualidade humana, temos que entender que essa é uma só. Os valores que precisamos encontrar no meio desse caminho é só um. E se não o encontrarmos, estaremos fadados a um mundo de preconceito, estaremos presos no limbo, sem esperança de saída.
Quando falamos de sexualidade, falamos da relação dos seres em busca de prazer. Mas não erotizamos, não falamos das sacanagens, das putarias, isso não se debate, é de cada um, é pessoal, é íntimo. Será que não é exatamente aí que erramos? Será que não é uma gigantesca hipocrisia achar que não se debate numa esfera mais comprometida a putaria e a sacanagem? Talvez, devêssemos gritar sem pudor que gozamos. É necessário também discutir o que nos faz gozar e perder o medo dos fetiches e das perversões, afinal eles existem e ignorá-los não os farão sumir. 
Talvez seja necessário, acima de tudo, levar o erotismo ao pé da poesia. A poesia que pra muitos é apenas uma arte ou um gênero lírico, mas hoje ela tem um papel fundamental na transformação do indivíduo e em como ele é capaz de ações que podem mudar o seu meio social. Não há esperança sem poesia, mas também não há esperança sem erotismo. Desapegar das amarras dos nossos conceitos de puro e impuro e levar o debate pra rua, pro bar.
Eu gozo, logo existo. E por existir e gozar preciso entender porque o meu prazer é um crime pra muita gente, e acima de tudo, preciso fazer com que ele não seja.

Se vocês querem um mundo melhor, se erotizem!